terça-feira, 8 de junho de 2010

A escola e a linguagem da criança




A escola e a linguagem da criança
Sônia Kramer

Vamos pensar no que representa a linguagem em nossa vida? Representa a possibilidade de faar de nossos sentimentos, idéias, planos, reivindicações, de conhecer os sentimentos e opiniões dos outros. Ou seja, a linguagem permite que as pessoas se expressem e se comuniquem entre si. Nessa medida, e graças, principalmente, à linguagem que se dá o processo de socialização.
Ora, se a linguagem é, assim, tão importante, vale a pena parar um pouco e refletir sobre as formas de agir que os professores podem adotar, a fim de fortalecer, enriquecer e ampliar a linguagem infantil. Para fazer essa reflexão, proponho que caminhemos passo a passo. Em primeiro lugar, é preciso conhecer como é a linguagem da criança com quem trabalhamos; em seguida, é necessário verificar como a pré-escola e a escola lidam com essa linguagem e analisar que conseqüências essa atuação traz para a própria criança. Assim, chegaremos a alguns pontos capazes de orientar nosso trabalho, no sentido de favorecer uma linguagem infantil rica, dinâmica, forte e confiante.
Vamos dar, então, o primeiro passo. Como é a linguagem da criança com quem trabalhamos? A linguagem infantil é diferente da linguagem falada pelos adultos. Em quê?
Por um lado, há diferenças decorrentes do fato de a aprendizagem da linguagem não se dar de repente, mas através de um gradativo processo de construção. Tomemos um exemplo: quando uma criança bem pequena diz "telo aga", entendemos que quer beber água. Sabemos que ela irá aprendendo a fazer outras articulações (pronunciando outros sons) e irá adquirindo novas estruturas (incorporando, na sua linguagem, palavras como eu, que, também, etc.).
Por outro lado, há diferenças que se devem a fatores sociais e culturais. Tomemos outro exemplo: quando uma criança diz "puliça", em vez de "policia"; "nós vai", no lugar de "nós vamos", expressa a linguagem que aprende com seus parentes, amigos, vizinhos, no seu meio cultural, com os parceiros do sua classe social. Sei que existem outras diferenças, mas vou me limitar a essas duas: uma, devida ao próprio desenvolvimento da linguagem da criança; a outra, produzida pelo contexto sociocullural em que a criança está inserida.
Vamos dar, agora, o segundo passo e indagar como a pré-escola e a escola lidam com essas diferenças. Parece-rne que não há dificuldades nem por parte dos professores, nem por parte dos adultos, em geral, quando as diferenças manifestas na linguagem refletem níveis diversos do desenvolvimento da criança. Os adultos sabem que é conversando com as crianças, incentivando a sua fala e valorizando as suas formas de expressão que se possibilita a construção e a ampliação da sua linguagem.
Os problemas aparecem, porém, quando as crianças, principalmente as das classes populares, têm uma linguagem diferente daquela considerada como sendo o modelo "correto". E o problema se coloca porque, nosso caso, a linguagem da criança não é vista pelos professores como diferente, mas como inferior. Partindo, assim, do princípio de que a linguagem das crianças das classes populares é deficiente, muitos professores deixam de valorizar as variadas formas de expressão verbal dessas crianças e discriminam sua linguagem, por achá-la "errada","fraca" e "pobre". ,
Que conseqüências esse tipo de atitude acarreta? Corrigir a linguagem da criança, antes de garantir que ela tenha confiança nas suas possibilidades de falar, faz com que ela se cale, bloqueie sua expressão e enfraqueça o seu poder de comunicação. Preocupados com a linguagem "certa", tornamos, assim, as crianças caladas e arredias... Isso significa que as crianças não devem aprender a lingua-padrâo? Não. Significa que o ponto de partida para se garantir o acesso de todas as crianças à linguagem considerada "correta" é aceitar a sua como é, reconhecê-la como manifestação lingüística legítima e digna.
As crianças têm direito de se expressar, utilizando as construções verbais aprendidas no seu meio social — e isso não significa que sejam inferiores em termos de linguagem. Elas têm direito, também, de dominar a língua-padrâo e de aprender em que situações ela deve ser usada — e isso é o que devemos ensinar-lhes, esse é o nosso papel.
Assim, uma prática pedagógica que pretenda favorecer a construção de uma linguagem infantil rica, forte e confiante deve partir do princípio de que há, sim, várias formas de linguagem, igualmente complexas e importantes do ponto de vista lingüístico. Além disso, porém, deve basear-se no fato de que, antes de insistir sobre "erros" ou "acertos", devemos dar chance às crianças de falar, pedir, reclamar, reivindicar, contar seus sonhos, seus projetos, sua luta, sua vida, enfim.
O que é preciso para que elas sejam capazes de produzir uma linguagem criativa, que fale do seu mundo e que sirva não só para compreender esse mundo, mas também para transformá-lo? Muitas coisasl Dentre elas, há algumas muito simples, que não resolvem nem garantem esse processo, mas podem ajudar o nosso trabalho: Conversar com as crianças, em vez de somente fazer perguntas para serem respondidas ou de dar instruções para serem seguidas, incentivando as conversas entre elas, no lugar do pregar o silêncio.
Finalmente, cabe enfatizar que só pretendemos valorizar a voz e a vez de falar dos nossos alunos, é preciso que nós percebamos como professores capazes, também, de produzir uma linguagem criativa, expressando emoções e idéias e construindo coletivamente a nossa palavra.


* Este texto foi publicado no Jornal do Professor, MEC/lnep. 1986.

Nenhum comentário:

Postar um comentário